No Mês do Orgulho, refletimos sobre a saúde mental da população LGBTQIAPN+, incluindo os seus desafios e a construção de redes de cuidado e acolhimento

Junho é o Mês do Orgulho LGBTQIAPN+, uma data que carrega um significado que vai além das cores vibrantes e das celebrações nas ruas. Afinal, as celebrações são apenas uma das facetas: ainda há muito o que refletir sobre visibilidade, resistência e, sobretudo, direitos. Incluindo o mais básico de todos: o direito de existir com saúde e dignidade.
Esse grupo ainda enfrenta as maiores taxas de transtornos mentais, abuso de substâncias e suicídio, segundo informações do NHS e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), agência ligada à Organização das Nações Unidas (ONU).
Por que isso acontece? E, principalmente, como podemos, enquanto sociedade e enquanto indivíduos, colaborar para mudar esse cenário?
Orgulho também é saúde mental
O sofrimento mental que atinge pessoas LGBTQIAPN+ não surge da identidade em si, mas do preconceito, da exclusão e da violência, muitas vezes vivenciados desde a infância.
Segundo o psiquiatra João Pedro Wanderley, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o impacto da rejeição, do não reconhecimento e da invisibilidade pode ser devastador.
“Quando não se é visto, escutado ou aceito como se é, o impacto psíquico pode ser profundo. O cuidado em saúde mental, nesse contexto, é mais do que clínico: é afetivo, social e ético”, diz.
Um estudo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) mostra que as dificuldades de acesso a serviços de saúde, além da violência física, simbólica e institucional, são fatores diretamente ligados ao adoecimento mental desse público.
Além disso, segundo o NHS (Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido), o isolamento, o medo de rejeição e as experiências de discriminação são gatilhos importantes para quadros de ansiedade, depressão e ideação suicida.
A saúde avança, mas ainda há desafios
Se por um lado temos conquistas expressivas — como a redução de 25,5% no coeficiente de mortalidade por HIV/Aids no Brasil entre 2012 e 2022, segundo o Ministério da Saúde —, por outro, os desafios relacionados à saúde mental permanecem relevantes.
A origem desse sofrimento? O não reconhecimento, explica Wanderley. “O sujeito precisa ser reconhecido em sua singularidade para poder se sustentar psiquicamente. Quando isso não acontece, o sofrimento se cristaliza, muitas vezes em forma de depressão, ansiedade, uso de substâncias ou ideação suicida”.
“O uso de drogas é sintoma de algo maior, não o problema em si”
Dados indicam que pessoas LGBTQIAPN+ apresentam taxas significativamente mais altas de uso e abuso de substâncias em comparação com a população heterossexual e cisgênera (pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao sexo biológico atribuído no nascimento). Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que entre 20% e 30% da população LGBTQIAPN+ abuse de substâncias, em contraste com cerca de 9% da população geral.
Essas disparidades são frequentemente atribuídas ao estresse de minoria, que inclui experiências de estigma, discriminação e rejeição social. Tais fatores podem levar indivíduos da comunidade a utilizar substâncias como mecanismo de enfrentamento para lidar com a exclusão, a violência e a invisibilidade social .
Mais do que uma questão de predisposição, o psiquiatra reforça que se trata, muitas vezes, de uma tentativa de aliviar dores emocionais profundas. “A substância entra como forma de aliviar a rejeição, a solidão, a exclusão. Às vezes, ela aparece em espaços onde essas pessoas se sentem, ainda que parcialmente, pertencentes. O uso é sintoma de algo maior, não o problema em si”, reitera.
Por isso, o cuidado precisa ir além da abordagem tradicional de dependência química. “É preciso escutar o sujeito, sua história, seus afetos e seu sofrimento, muito além da droga em si. Por isso, é essencial buscar apoio profissional especializado, que possa olhar para o contexto com escuta e acolhimento, sem reduzir o sujeito à substância”, complementa o psiquiatra.
Caminhos possíveis para cuidar da saúde mental da população LGBTQIAPN+
O cuidado em saúde mental para essas pessoas precisa ser, acima de tudo, acolhedor e livre de julgamentos. Isso significa:
- Buscar profissionais capacitados e sensíveis às questões de gênero e sexualidade;
- Criar e fortalecer redes de apoio, sejam de familiares, de amigos ou de comunidades;
- Estar em espaços onde seja possível existir com autenticidade, sem medo.
“A clínica, por si só, não dá conta de todo o sofrimento. Mas ela pode ser um espaço potente de reparação e resgate do desejo. E, quando isso se faz em diálogo com o social e o coletivo, o cuidado se torna muito mais efetivo”, completa Wanderley.
Qual o papel de quem quer ser aliado na luta?
Ser aliado não é só não reproduzir preconceitos. É ser ativamente contra eles. Isso significa:
- Escutar mais e falar menos;
- Estudar, buscar informação, buscar compreender vivências que não são suas;
- Usar espaços de privilégio para abrir portas, combater preconceitos e defender direitos;
- Construir ambientes (familiares, escolares, profissionais etc.) seguros, afetivos e inclusivos.
“Quando o ambiente é seguro, afetuoso e inclusivo, o sofrimento diminui. O orgulho é um ato político, mas também profundamente afetivo. É o direito de existir com dignidade”, complementa o médico.
No Mês do Orgulho, e em todos os outros, saúde mental importa
Falar sobre saúde mental da população LGBTQIAPN+ não é só um tema para o Mês do Orgulho. É uma pauta permanente, urgente e coletiva. Porque ninguém deveria adoecer por simplesmente ser quem é.
Neste mês e nos demais, devemos refletir se os espaços de cuidado e atenção à saúde estão preparados para lidar com as complexidades dessa população e com as consequências devastadoras que o preconceito pode causar na vida dessas pessoas.
Então, que possamos construir, todos os dias, espaços onde o orgulho, o cuidado e o amor sejam possibilidades reais e não apenas a pauta das discussões no mês de junho.